8 de fevereiro de 2011

A tecnicização da vida


Em tempos de parto me surgem várias percepções que antes sequer faziam parte dos meus interesses. Mas como não somos seres divididos, a ponto de fantasiar personagens radicalmente distintos em cada "setor" da vida (embora assim entendam alguns funcionalistas), as questões que sempre me afetaram no cotidiano me fizeram também procurar, no longo caminho de um gestação e do preparo para o acolhimento de uma nova vida, formas de vivenciar isso de forma menos alienada possível. Que eu pudesse fazer minhas escolhas a partir de informações, discussões, descobertas. E de fato, esse tem sido um mundo de descobertas. Algumas nem tão novas assim.

Toda aquela mediação de tecnicização alienante e seus paradoxos bem descritos na "dialética do esclarecimento" também atingem claramente esse momento misterioso do nascimento. Podemos chamar isso de reflexos da biopolítica ou parte de um projeto de modernização que inventou a doença para descobrir a cura. Não são bem esses os conceitos que me interessam aqui.

A entrada da medicina e seu desenvolvimento técnico na cena do nascimento trouxe, em um primeiro momento, uma diminuição nas taxas de mortalidade materna e neonatal. Mas as intervenções que surgiram para enfrentar situações específicas, tornaram-se a rotina obstétrica. A ponto de a mulher, aquela que pare, perder o papel de personagem principal, e tornar-se ali um objeto de intervenção incapaz de experenciar aquele momento como seu. O parto como ato médico e quase cirúrgico (mesmo quando falamos aqui de "partos normais" tradicionais - com administração de ocitocina, analgesia, fórceps, episiotomia) passou a mediar o poder da mulher de parir e o acolhimento de seu filho.

Já faz anos que esse quadro, através de políticas de saúde ou de iniciativas individuais, tem conseguido reverter-se um pouco. Mas a sombra cultural que se construiu durante décadas, na qual a mulher se vê incapacitada do poder de parir e na qual ela antecipa todas as intervenções que eventualmente podem ser necessárias (segundo dados da OMS, "eventualmente"representa menos de 15% dos partos) ainda é uma forte herança a se enfrentar.

Para caricaturizar a construção dessa longa sombra, um vídeo dos impagáveis Monthy Python.



Um comentário:

Luís Filipe disse...

Fazia tempo que eu não via essa cena do "sentido da vida". Forte! Com o teu texto ficou ainda mais contundente!