19 de julho de 2010

Copa só para os Bacanas



"Pessoas queridas!
Como alguns sabem, estou no Rio de Janeiro, organizando algumas coisas para minha pesquisa.
Sim, a cidade continua maravilhosa. E a maravilha se mantém em virtude dos grandes esforços realizados pela população e pelos governantes!
É para explicar a fórmula da Cidade Maravilhosa que vim aqui escrever para vocês numa deliciosa noite de segunda-feira. Temperaturas ótimas e o clima que só o Rio tem nas noites de janeiro.
A fórmula para o rio de janeiro continuar lindo é reiventada de tempos em tempos, desde quando a cidade ainda era capital do Império. O novo nome se chama: Choque de Ordem.
Segundo notícias dos jornais que tenho acompanhado há uma semana (JB e o Globo), o novo prefeito começou seus trabalhos com um dos braços fortes da política: em defesa da ordem pública! Segundo leitura de jornalista da Carta Capital, esse "inovador" projeto do novo prefeito tem como objetivo atingir especialmente a Zona Sul Carioca, reduto de votação de simpatizantes do Gabeira. Sim, o novo governo entendeu que precisava reforçar e conquistar um eleitorado com as seguintes características: pessoas bossa-nova, cools, talvez alguns ex-participantes da luta contra a ditadura, talvez alguns ativistas que lutam pelo reconhecimento de direitos das minorias, e acima de tudo, um eleitorado exigente, intelectualizado, de esquerda, e que claro, gosta de sair de noite para passear com seus cachorrinhos, e querem se sentir seguros para exercer esse importante direito civil.
Pois bem, para esses eleitores serve o "choque de ordem". Novo governo, velhas práticas. A linha mestra do programa é limpar a cidade, a começar pela zona sul. Para os que não tem claro o significado da palavra sujeira, a leitura de alguns editoriais do JB e o Globo pode ser esclarecedor. Guardei um deles e reproduzo num momento com mais tempo. Mas para encurtar o caminho, alguns sentidos da palavra para vocês: sujeira = lixo, moradores de rua, camelôs, prostitutas, travestis e toda sorte de entulho. Sim, claro assim, com todas as palavras.
Acompanho, há uma semana, os exigentes jornais, com seus exigentes leitores, exigindo do novo prefeito que o tal "choque de ordem" comece a funcionar a pleno vapor, porque afinal as pessoas já não suportam andar pelas ruas da cidade e tropeçar em tanta sujeira. Querem que as calçadas fiquem livres pros seus cachorros, nos passeios noturnos, pras suas mesinhas de bares, pro chopp de fim de tarde.
No jornal de domingo apenas um tímido artigo de um tímido intelectual, professor de uma tímida Universidade, em que afirmava suas dúvidas quanto à eficácia das políticas de limpezas de ruas à moda nova iorquina. Fora isso, um nada sonoro. Um silêncio barulhento. Nada e nada. A isso se reduzem as dissonâncias. 
Há cerca de meia hora desci do meu quarto confortável de um hotel em Copacabana (porque, claro, preciso me sentir entre os meus, bossa-novas e seus cachorrinhos de estimação), para fugir do tédio. Na esquina da rua do hotel Jucati, encontro estacionado um furgão da prefeitura, com letras coloridas que diziam "CopaBacana". Também poderia ser traduzida: "Copa só para os bacanas". Dentro do furgão, meninos (de rua). Em volta do furgão, funcionários da prefeitura, e uma funcionária de luvas de borracha. Afinal, são normas do trabalho: para trabalhar com lixo é preciso que se utilize de equipamentos apropriados. Atrás do furgão, um caminhão da prefeitura, que levava os lixos que acompanhavam os lixos: cadeiras, isopor, e restos das moradas de quem mora na rua.
O carro CopaBacana fazendo seu trabalho: garantir o bairro para os Bacanas. No período em que esteve estacionada a frota de limpeza da cidade, alguns bacanas passeavam com seus cachorrinhos. Claro, todos com suas sacolinhas de plástico para limpar as ruas da sujeira dos seus adoráveis bichinhos que usam, inclusive, sapatinhos (que provavelmente, custam mais do que o isopor, as cadeiras quebradas: afinal para os bichinhos quadrúpedes, são preciso dois pares).
Alguns passavam sem olhar. Outros paravam, perguntavam do que se tratava, e continuavam seu caminho, talvez mais aliviados. Um deles parou na esquina e gesticulava com a moça de luvas. Eu queria acreditar que era algum protesto ingênuo, mas diante das circunstâncias, penso que ele apenas reclamava que na outra esquina ainda tinha lixo. Era o rapaz oferecendo à agente de limpeza o mapa das lixeiras.
Durante a meia hora noturna de espetáculo, nenhum repórter, nenhuma foto, nenhum registro.
O silêncio é o maior espetáculo. Motivado pelo aplauso ou pelo constrangimento. Não importa. O silêncio cumpre seu papel de assinar a política sem escrever o nome. Uma assinatura invisível e silenciosa da politizada população zona sul preocupada em garantir os direitos civis, rememorar os maus momentos da ditadura, ir ao cinema e apoiar a causa palestina.
Provavelmente tenham esquecido da derrota do Gabeira. Eduardo Paes está cumprindo bem sua função. Com discrição, é claro."

(Rio de Janeiro, Janeiro, 2009).

2 comentários:

Luís Filipe disse...

O silêncio é que são elas.

Professor Tácito Alves disse...

Nesse caso, mocinha, não é o silêncio dos "bons" que me assusta; o silêncio dos "maus" têm os seus fadários. Precisamos de suas eloquentes vozerias. Gostei do blog.